programa
darks miranda
darks miranda
filmografia selecionada de 2009 a 2022
apresentação
Já faz algum tempo desde que comecei a gestar a ideia do colo, e os filmes de Luisa Marques/ Darks Miranda logo me vieram à mente para compor o programa de abertura da plataforma. Enquanto curador e programador de cinema, a prática da montagem como ferramenta de geração de sentido e reorganização das imagens no espaço e no tempo sempre me foi muito cara. Nesse mesmo sentido, Luisa é uma das realizadoras e montadoras que mais me interessam no cinema brasileiro contemporâneo. O seu trabalho profícuo, que transita entre as artes visuais, a performance e o cinema experimental, reúne um arsenal de imagens que se sobrepõem em camadas espessas e traduzem, com uma jocosidade que lhe é muito específica, um certo estado das coisas no Brasil de hoje: um país forjado pelo fracasso do seu projeto modernista no século XX, que agora tem de lidar com os detritos da história e, para citar um de seus trabalhos, com o lodo acumulado no concreto ao longo dos tempos; assombrado por fantasmas que rondam insistentemente os espaços públicos e privados.
Os trabalhos de Luisa e Darks reunidos aqui vão do cinema à performance, passando pela instalação audiovisual, a instalação sonora e até mesmo colóquios acadêmicos. A retrospectiva abrange a sua produção de 2009 até 2021. Provocado pela plasticidade do seu trabalho como montadora, proponho aqui uma apresentação dos filmes em ordem não cronológica, amalgamados em grupos que se organizam por aproximações e repulsões de ordem visual e temática.
Começamos com “O espectro de D. Miranda ronda o seu antigo museu” e “Lodo acumulado no concreto”, trabalhos apresentados em 2018 no Colóquio Mark Fisher - Realismo Espectral. A força enunciadora da palavra e da narração, um gesto que se repete em vários dos seus filmes, costura a linha narrativa de “O espectro”, que dá conta de apresentar a personagem/alter-ego Darks Miranda, uma força da natureza que retorna ao mundo dos vivos e ronda, ad nauseum, o espaço do antigo museu de Carmen Miranda no Parque do Flamengo, Rio de Janeiro.
Tomando de empréstimo as palavras de Luisa na sua fala ao apresentar D. Miranda: "Há uma considerável variação de perspectiva a respeito d(e) Darks Miranda. Por exemplo, foi interpretada como espectro direto de Carmen, entidade das trevas, a própria vida, maldição tropical, geradora da diferença, espectro humano vegetal, espectro da natureza, espectro da sociedade brasileira, espectro de mundos entrecruzados, duplo antagônico de Carmen, espírito canibal, a exata imagem da modernidade, fantasma de nossa alienação, assombração benfazeja”.

O caráter circular de “Lodo acumulado no concreto” se dá não apenas pela caminhada insistente de Darks nas bordas do seu museu abandonado, mas pela cadência dos sons que acompanham a performance e se repetem ao longo do tempo da projeção. Vale ressaltar a parceria de Luisa com Orlando Scarpa Neto, figura recorrente no seu trabalho, que imprime uma camada de experimentação sonora interposta às imagens ultra processadas por programas de edição.
“Equilíbrio de mamão sobre a cabeça” também joga com a insistência dos movimentos circulares. A performance filmada como instalação audiovisual apresenta a figura espectral de D. Miranda coberta por uma camada de látex preto enquanto equilibra um mamão que se desfaz, progressivamente, a cada vez que cai no chão. Esse jogo de repetição desafia a persistência da atenção do espectador engajado num tempo que se dilata em longos 34 minutos.
Gosto de pensar nesse breve preâmbulo para introduzir o trabalho mais conhecido de Luisa e Darks, “A maldição tropical”, ponto de inflexão na carreira da realizadora. O filme traz de volta o fantasma de Carmen, transfigurado em Darks, enquanto especula sobre o projeto de modernidade e urbanização do Rio de Janeiro no século XX, culminando na construção do Museu Carmen Miranda no Parque do Flamengo, 20 anos após a morte da cantora-atriz; um museu natimorto que agora resiste, inerte, às intempéries do tempo. O exotismo caricatural dos trópicos imantado e eternizado na figura de Carmen Miranda dão estofo à construção de uma ideia de identidade nacional brasileira. Em meio a sobreposição de imagens de arquivo e narrações de época, através de um trabalho de montagem preciso, as noções de futuro e progresso são desmanteladas paulatinamente por Luísa e Darks.
Em 2021, quando ainda programava o Cinema do Dragão, montei uma sessão de curtas intitulada “impressões e sobreposições”, no qual apresentei “Zona abissal”. A próxima sequência de filmes revela a força da montagem como ferramenta incontornável na poética de Luísa Marques e Darks Miranda. Articulando imagens de arquivo impressas e sobrepostas umas nas outras, num regime de hiper-processamento das texturas/cores lapidadas em pós-produção, a realizadora convida o espectador a imergir numa experiência sensorial nem sempre amparada por um fio narrativo linear. “Os objetos os animais os mortos”, “A cosmopolítica dos animais”, “Celularrr” e “Zona Abissal” se apresentam, dessa forma, como experimentos que se utilizam de intervenções na imagem ultra-processada por ferramentas de pós-produção. Aqui, a montagem não só dá sentido ao fluxo de imagens esparsas na linha do tempo: ela também gera diferença.
Em “Toda cor abandonada é violenta” e “Artes e jogos em Fortaleza”, Darks lança mão da imagem televisiva de arquivo para dar destaque ao gestual do corpo em movimento, seja na dança ou na prática esportiva. O registro absolutamente banal de uma TV que exibe uma apresentação de ginástica artística ganha contornos de epicidade quando recursos como o zoom in ou o slow motion entram em cena para capturar a atenção do espectador. O foco especial na textura emitida pelo tubo catódico de um aparelho televisor antigo faz com que, por vezes, a imagem perca sua legibilidade para ganhar um valor abstrato hipnótico. Um tema que atravessa “Toda cor abandonada é violenta” e também, em certa medida, “Star power ready” (co-dirigido por Bernardo Barcellos, Isabela Mota, Leonardo Levis), é o de como a sexualidade feminina se expressa e se manifesta na tela de cinema.
A paisagem sonora de “Toda cor” remete a um imaginário imediatamente ligado à pornografia, mas o faz num jogo de subversão, criando um descompasso gritante entre imagem e som. Em “artes e jogos em Fortaleza”, o uso de imagens de arquivo televisivas também é explorado para dar plasticidade ao movimento do corpo que se exercita na dança e no esporte. A repetição, a câmera lenta e o uso reiterado da palavra como elemento discursivo transformam o filme numa experiência sensual que carece de um sentido imposto unilateralmente pela artista. “Lambada estranha”, por sua vez, também tem na gestualidade do corpo em movimento (o corpo dançante, pra ser mais específico) o seu motivo principal, mas o faz num regime de imagens ultra processadas e num cenário que pode ser lido como pós-apocalíptico. Nessa paisagem em chamas, onde a viscosidade da lava vulcânica escorre pela tela, criaturas estranhas praticam uma aula de lambada.
“Ibiritaquera” e “Memorial Maracanã” marcam duas parcerias de Darks Miranda com o artista Pedro França. Em ambos os filmes, o tema da arquitetura é posto num diálogo íntimo com questões socioambientais. A destruição do monumento icônico em “Memorial”, que sucumbe às chamas, faz pensar nas memórias abrigadas no Maracanã ao longo da sua vasta história no Rio de Janeiro, revisitada pelo olhar estrangeiro. Ademais, o filme se agarra ao tempo presente de tal forma que é impossível assisti-lo sem associá-lo ao processo violento no qual a floresta amazônica foi colocada nos anos de Jair Bolsonaro, reduzindo dezenas de milhares de hectares da maior floresta tropical do mundo a cinzas. Em “Ibiritaquera”, a técnica da animação 3D reconstitui uma paisagem natural que irrompe como erva daninha nos arredores do monumento dos bandeirantes. Aqui, a música eletrônica e a sobreposição de cores e imagens configuram uma experiência sobretudo sensorial, mas carregada de um gesto que pode ser encarado como especulação fabulativa sobre um porvir que se desvela no horizonte como distopia pura.
Julguei ser justo colocar por último o primeiro filme de Luísa/Darks (a essa altura é difícil diferenciá-las) na cronologia dessa retrospectiva. “Manassés” é um registro caseiro e comovente de Luísa para o protagonista que dá nome ao filme, o cantor, instrumentista e compositor cearense Manassés de Sousa. Aqui, Luisa já ensaia várias das técnicas e ferramentas que iriam compor a sua obra nos seus filmes seguintes: a experimentação a partir da música, da sobreposição, o uso do arquivo e da palavra como elemento discursivo/visual. O caráter observativo e contemplador do filme dá ao seu protagonista um senso de grandeza artística, ao passo que Luisa se põe na tela (como tantas vezes faz enquanto Darks) como cúmplice de uma trama engendrada pela música e pela banalidade do cotidiano de uma cidade de interior.
texto: pedro azevedo (2023)






sobre Darks
Autoficção e incorporação de forças obscuras e cômicas incontroláveis, Darks Miranda é uma entidade pastelão das trevas que equilibra frutas sobre a cabeça assombrada por suas antepassadas. Brota dos escombros mudos da modernidade, sem ginga, e desliza pelas camadas de lodo acumuladas no concreto através dos tempos.
Darks propõe versões de um imaginário brasileiro e estranho, monstruoso, ficcional, fetichista e frutífero, tristeza disfarçada de alegria e vice-versa. Com referência primeira na mulher fruta inaugural Carmen Miranda, incursiona cultura de massa adentro, partindo de meados do século XX, passando pelas mulheres fruta dos anos dois mil, pela lambada, pelo cinema de horror e ficção científica e pelo flerte com o animismo e o fantástico. Utilizando a montagem como procedimento e linguagem, faz uso de diversas mídias e formatos, como instalação, escultura, vídeo, fotografia, performance e objeto. Os diferentes trabalhos se contaminam e afetam, formando juntos um universo próprio.
Podcast - Colo #1 - Darks Miranda + Pollyana Quintella + Pedro Azevedo
Não poderia pensar numa melhor forma de dar o pontapé inicial nesse espaço do que apresentando o trabalho quase integral de Luisa Marques/Darks Miranda, cujo trabalho venho acompanhando com renovado interesse a cada novo filme. Ensaiar costurar uma narrativa em cima dos seus filmes é um esforço curatorial que faço em alusão ao seu notável trabalho como montadora. O que propus aqui foi um jogo de montagem que, assim como os seus filmes, abrem ao espectador a possibilidade retorcer as imagens e fazer delas o que quiser. O podcast linkado a seguir não poderia ter sido feito sem a generosa participação de Pollyana Quintella (Pinacoteca de São Paulo), cuja interlocução sobre o universoda curadoria tem sido profícuo nos últimos anos