um caderno para

Janaina Wagner

considerações

Não é incomum confrontarmo-nos com imagens iconoclastas no trabalho de Janaina Wagner. Registros de demolições de edifícios em grande escala, desastres naturais, incêndios ou até mesmo a obliteração de paisagens naturais por meio de práticas extrativistas predatórias. A destruição está de alguma forma à espreita e segue viva na esteira dos ideais modernistas de progresso que fundaram a república, como evidenciado pelo reiterado interesse da artista na história e paisagem do norte do país.

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A variedade de enfoques, técnicas e suportes explorados na produção de Janaina faz com que cada um dos seus trabalhos estabeleçam lógicas e experiências de fruição bastante particulares. O esforço contínuo de estabelecer intertextualidades a partir do seu conjunto de referências, junto a sua habilidade de tradução poética por meio da manipulação da imagem e da palavra num exercício fino de edição e montagem, marcam fortemente as suas obras tanto no cinema quanto nas artes visuais, abrindo uma interface de engajamento ativo com o espectador, convocando-o a deambular num mundo de imagens híbridas que escorrem das bordas da tela e ganham materialidade para se moverem livremente em diferentes espaços expositivos.  

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Não surpreende, portanto, a incorporação de elementos tão simples quanto díspares como, por exemplo, a canção "Chuva de Prata" em LICANTROPIA, um dos seus filmes mais reconhecidos. Nele, a artista experimenta transportar toda a mística que cerca a figura do lobo no imaginário universal para cenas cotidianas. O termo hora do lobo, referenciado no curta-metragem LOBISOMEN, faz alusão ao clássico de Ingmar Bergman e remete ao suposto momento intersticial do dia em que mais pessoas nascem e morrem simultaneamente. Enquanto LOBISOMEN se cerca de referências e citações do cinema e da literatura para estruturar sua narração verborrágica, a fim de escancarar o projeto de destruição decorrente do extrativismo predatório no Brasil, filmado num único grande plano geral aéreo, LICANTROPIA, por outro lado, parte de uma lógica de montagem dinâmica que mistura um conjunto de imagens e sons captados pela diretora com arquivos da história do cinema e da literatura que fazem referência à figura mágica do licantropo, tradicionalmente associado à loucura e à desrazão. Tratam-se de dois trabalhos polissêmicos que adotam estratégias distintas do ponto de vista formal ao tangenciarem temas vizinhos. Desrazão, ruptura e destruição à luz da experimentação artística.

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Este programa curatorial assumidamente fragmentado e lacunar busca estabelecer uma leitura conjunta da obra de Janaina Wagner, articulando textos, imagens, músicas e filmes como num caderno de pesquisa aberto.  

paisagem, corpo e artifício

as viagens de Janaina à região amazônica renderam alguns de seus principais trabalhos, à exemplo de CURUPIRA E A MÁQUINA DO DESTINO, que faz um comentário sobre a imposição de um projeto político de modernidade e exploração colonial da Amazônia fortalecido pelo regime militar na segunda metade do século XX. As paisagens naturais e humanas do norte, acometidas por um lastro de violência destrutiva que se repete ad nauseum ao longo da história, fazem vizinhança com outros filmes da diretora como ESTRADAS FANTASMAS, curta composto por um longo plano-sequência que enquadra duas mulheres estendendo um lençol branco numa estrada de terra batida, onde incide a projeção de uma imagem animada indistinta.

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O comportamento peripatético da protagonista de CURUPIRA, em referência direta a Iracema da Transamazônica de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, se converte na força motriz do filme, que reatualiza mitos folclóricos e adiciona novas camadas ao repertório de representação visual da Amazônia no audiovisual brasileiro. Em ambos os curtas, o corpo e a agência das mulheres se revelam em simbiose plena com as paisagens que as cercam, estejam elas inertes ou em movimento, mediados a todo momento pelo artifício e pelo truque próprios do cinema. 

literatura, pintura e feitiço

A sequência de imagens acima é extraída de GREEN FLESH, GREEN FLASH, trabalho onde Janaína joga novamente com ferramentas de intertextualidade, articulando um conjunto de referências fílmicas e literárias a partir de um motivo disparador bastante simples: ela projeta uma tripa de película 16mm revestida por uma pintura de tinta acrílica na superfície de uma lápide identificada como de Mary Wollstonecraft, mãe de Mary Shelley, autora de Frankenstein. A sepultura de Wollstonecraft, apresentada de forma escultórica e totêmica, tece um emaranhado de fios difusos sobre a criatividade e o apagamento de mulheres na história da arte.

O título do curta faz alusão ao clássico de Eric Rohmer, Le Rayon Vert, que surge em fragmentos entrecortados  em meio a montagem. A exemplo de outros trabalhos da artista, este filme tem um caráter multidisciplinar que lhe expande alternativas de apresentação em espaços além da caixa preta tradicional, podendo ser projetado em duas telas em galeria aberta (branco ou não) no formato de instalação audiovisual, estabelecendo outros regimes de temporalidade e espacialidade. Essa prática de experimentação da imagem animada em contato com o espaço expositivo, cuja herança remonta o cinema de exposição fortalecido pelo advento do vídeo e dos projetores portáteis na segunda metade do século XX, se radicaliza ao passo que as tecnologias de captação e exibição audiovisual avançam e se tornam mais acessíveis.

Ainda no campo do hibridismo, a materialidade impressa na tela através da representação da lápide de Wollstonecraft como elemento escultórico também transborda do filme para uma série de pinturas a óleo homônima. São trabalhos que exploram o fenômeno do rayon vert em outro suporte. Neles, a magia da imagem reclamada pela artista em sua narração, lançada ao espectador como um feitiço, estira raios esmeralda em um mundo negro de chamas.

dar corpo ao imaterial

O cenário amazônico é reavivado novamente em CÃES MARINHEIROS. No filme, a realizadora viaja ao Velho Airão e Igapó-Açuem, território onde um grupo de missionários portugueses fundou uma pequena vila no final do século XVII para extração de borracha. Após um período de crescimento e prosperidade da região, alavancada pela prática extrativista, sucedeu-se uma decadência aterradora onde os inúmeros detritos acumulados pelo tempo servem de testemunho histórico e fundem-se à arquitetura arruinada da vila, marcando um retorno implacável da natureza. Narrado em inglês formal, o filme adapta o conto homônimo de Herberto Heber, uma fábula sobre cães que possuem marinheiros como animais de estimação, transportando-o ao universo peculiar do norte do país.

As questões políticas que atravessam a região amazônica na sua história de exploração violenta desde o período colonial até a republica cercam o filme - a exemplo da a própria natureza à espreita - a todo momento.

Convém reparar e reiterar o fascínio de Janaina na mitologia das figuras caninas, evidenciado recentemente na sua instalação audiovisual comissionada pelo Pivô (SP) intitulada BALEIA FANTASMA. Tendo como base as imagens de arquivo da adaptação do romance Vidas Secas por Nelson Pereira dos Santos, a instalação é estruturada a partir de uma soma de recursos materiais bastante simples que interpolam poéticas das artes visuais e do cinema, resultando numa espécie de escultura animada imaterial, um escoplasma flutuante que dá corpo à cadela Baleia, imortalizada por Graciliano Ramos.

reinvenção do arquivo

A manipulação de arquivos audiovisuais, evidente a esta altura, se manifesta de forma inventiva em alguns dos seus principais trabalhos. Citações diversas, do cinema à televisão, se emaranham num tecido multiforme de referências.

Em O FUTURO JÁ COMEÇOU, a artista se vale da sensação compartilhada de universalidade das vinhetas da rede globo, recuperando arquivos que remontam os anos 70, para remodelar-las num exercício de edição e montagem distorcida, causando estranhamento e desconforto. A sensação de horror subjacente a essas imagens e sons que evocam uma gentrificação grotesca, tão familiar ao público brasileiro, se amplifica enquanto a tela derrete diante dos nossos olhos, emulando algo próximo de um  poltergeist.

ainda sobre animalidade, destruição e variação de suporte

A animalidade monstruosa presente em trabalhos como VENTURA, GADO FRANKESTEIN, FARANDOLE CAVALO E CARRO, MORTINHOS e CRIATURA reforça a insistência na escatologia destrutiva que aparece com frequência nas experimentações audiovisuais de Janaína. Ferramentas como animação digital, dilatação da taxa de quadros, múltiplas telas, trilha dissonante e deslocamento da imagem para espaços alternativos, atravessam não só essas obras em específico, mas apontam para a versatilidade de repertórios e suportes sobre os quais a artista se debruça na sua prática transdisciplinar. 

uma visão panorâmica

Janaina Wagner é uma das artistas brasileiras do presente que navega com maior fluência entre o cinema, as artes visuais e a palavra. O seu trabalho interdisciplinar transborda do enquadramento convencional da imagem plana para infiltrar-se em diferentes espacialidades e suportes, explorando alternativas de agenciamento do espectador através da artesania da montagem e da edição.

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este programa revisita parte da obra de Janaína no Colo e se insere num contexto de pesquisa contínua da plataforma sobre o cinema brasileiro contemporâneo e a prática curatorial como exercício criativo.  

pedro azevedo,

maio de 2024

por cortesia da artista, disponibilizamos abaixo uma seleção adicional dos seus trabalhos em audiovisual

Aqui, Agora

2015 - 30’

instalação em dois canais

Progresso

2014 - 4’

Um carro se move em direção a uma nuvem densa, volumosa, sombria e rosada-acinzentada e então penetra na escuridão. O áudio, uma mistura de batidas e flares fotográficos, pertence ao arquivo sonoro da artista e foi gravado durante as manifestações contra a Copa do Mundo de 2014 em São Paulo, Brasil.

Terreno

2014 - 9’

"Terreno" utiliza filmes promocionais de empresas americanas especializadas na produção e venda de casas pré-fabricadas para investigar os processos desenvolvidos pelo homem para se proteger de contingências como desastres naturais. Nestes filmes, dentro de um armazém industrial, modelos em escala real de casas são submetidos a testes de resistência a fenômenos naturais artificiais.

Concreto

2014 - 5’

Videoinstalação em dois canais

Mortinhos

2013 - 5’

Videoinstalação em dois canais

Letargia

2013 - 5’

Videoinstalação em múltiplos canais

A DOENÇA DA MORTE

2012 - 10’

Após o livro "La maladie de la mort", de Marguerite Duras

Mercúrio Meteora

2020 - 3’

"Mercúrio meteora" é uma ficção científica muito pequena onde uma pedra nos conta o que vê na trajetória de sua queda. Se esta pedra meteorítica - fragmento do planeta Mercúrio - for uma ruína do mercúrio - índice do nosso tempo, um metal tóxico comumente usado em minas devastadoras - a pedra resiste, despencando de dentro da terra, nas estradas e entranhas de projetos retos perversamente chamados de "progresso". As imagens foram captadas em busca de mundos possíveis, mesmo que surreais, dentro do vértice do confinamento.

Janaina Wagner

Trabalha com cinema, desenho e instalações. Seu trabalho visa apresentar uma compreensão crítica das maneiras pelas quais os humanos impõem sistemas de ordem e controle sobre o que os rodeia. Através da apropriação da história apresentada por várias formas de mídia, Wagner considera como noções de progresso e legado são articuladas através de uma constelação de contos, fatos, imagens e memórias.

Com bacharelado em Belas Artes e Jornalismo, e professora de vídeo do ensino médio, Janaina desenvolve seu trabalho plástico em um processo de decupagem, rearticulando imagens, histórias e textos que já estão inseridos na circulação midiática.

Atualmente doutoranda no Le Fresnoy-Studio National des Arts Contemporains (FR) com a tese intitulada "LE PRÉSENT EN EFFONDREMENT – DES FANTÔMES ERRANTS : FAIRE MONDE AVEC DES LOUPS-GAROUS, ÉLÉPHANTS DE FER, CURUPIRAS, IRACEMAS, BETAIL FRANKENSTEIN, LUNES ET BALEINES", Janaina também está desenvolvendo seu primeiro longa-metragem, o documentário experimental A MALA DA NOITE