
filmografia expandida
nada de novo no chthuluceno
“Diferentemente do antropoceno e do capitaloceno, o chthuluceno é composto de estórias e práticas multi espécies contínuas de devir com em tempos precários arriscados, nos quais o mundo não acabou e o céu não caiu - ainda. (…) os seres humanos não são os únicos atores importantes no chthuluceno (…) ainda assim a ação de seres humanos reais e situados importam.
(HARAWAY, 2023, p. 104)
A ficção realista é implacavelmente focada no comportamento e psicologia humanos. “O estudo próprio da humanidade é o Homem. (…) arrisco uma afirmação não definidora: a ficção realista é atraída para o antropocentrismo, a fantasia, pra fora.
(LE GUIN, 2021, p. 8)
a preucupação central da narrativa, incluindo o romance, é o conflito. (…) eu discordo de tudo isto. Eu iria mais longe e diria que a forma natural, apropriada e adequada do romance, pode ser aauela de uma sacola, de uma bolsa. Um livro guarda palavras. Palavras guardam coisas. Carregam sentido. Um romance é um patuá guardando coisas numa relação particular e poderosa umas com as outras e conosco. (…) seu propósito não é nem o da resolução nem o do êxtase, mas o do processo contínuo.
(LE GUIN, 2021, p. 22-23)
recipiente - sobreposições
um ano depois de lançar uma fatia extensa da filmografia de Darks Miranda como parte do lançamento do colo, retomamos as atividades da plataforma disponibilizando três dos seus últimos filmes realizados entre 2022 e 2023. Agradeço imensamente a generosidade e confiança da artista ao depositar os seus trabalhos inéditos aqui.
As citações que abrem esse texto não estão aí por acaso. Recentemente, no âmbito do Janela Internacional de Cinema do Recife, eu, Darks Miranda, Ana Vaz e Juliana Fausto nos reunimos num debate virual que discutia questões que aproximavam o cinema das duas referidas artistas ao pensamento de Donna Haraway, Ursula K. Le Guin e Isabelle Stengers. Fugindo da armadilha da representação opressora, parecia fazer sentido naquele momento pensar num cinema experimental (na falta de um termo guarda-chuva melhor) que desse vazão ao mais-que-humano, que reiventasse a ideia de fim do mundo ou de pós-apocalipse. Um anti “pós-pós apocalipse” como disse Mazin Saleem ao citar a obra de Le Guin, trazido à baila por Juliana Fausto. O link dessa conversa estará no apendice desta página.
Os filmes aqui reunidos são Uma noite perigosa na ilha de vulcano (2022), A figura da quimera seria mais adequada (2023, co-dirigido por Juno B.) e A Ilha (2023). Tratam-se de obras radicalmente diferente em abordagens e estratégias narrativas, mas cujas zonas de contato são inegaveis, uma vez que o processo de montagem de Darks, bastante inconfundível a essa altura, se desdobra de formas inventivas e desafiadoras em todos os filmes. Tal qual na bolsa de ficção proposta por Ursula K. Le Guin, para Darks, os filmes são um recipiente contendo um conjunto de imagens que carregam sentidos não guiados pelo conflito ou pela resolução, mas pelo amalgamado de sensações suscitadas pela livre manipulação/apropriação de arquivos que povoam o nosso imaginário coletivo, uma vez que partem de arquivos públicos de fácil acesso. A estranheza causada pela retorção quase lúdica dessas imagens adicionam uma camada de prazer que, pelo menos a mim, move o desejo inequívoco de seguir atento aos próximos passos da artista, curioso para descobrir de qual nova forma ela irá desconcertar o espectador nesse processo de criação tão profundamente íntimo, mas partindo de repertórios e materiais amplamente universais.
“Cosmo é tudo o que existe, existiu ou existirá”. É engraçado que eu estivesse enredado na leitura de Cosmos de Carl Sagan poucas semanas antes de reassistir Uma noite perigosa na ilha de vulcano (2022), e essa sensação de amplitude cósmica, paisagens escondidas nos mais recônditos sítios de um universo não apenas inifinito como em expansão, cujo corpo celeste multicolorido dança como numa coreografia não guiada exatamente pelo som, mas pela policromia tão característica no trabalho de intervenção imagética de Darks. A questão de Haraway e Le Guin parece ressoar com força nesse registro não guiado pela figura humana ou pelo conflito: como seria um universo sem a agência do homem, do herói? Como outras formas de vida mais-que-humana se alastram e ploriferam na geologia cristalizada desses astros, planetas anões e mundos fantásticos? Este filme parece emerger como um trabalho audiovisual único, totalmente composto, vale frisar, por imagens de filmes de ficção científica produzidos entre 1950 e 1989, capturando um imaginário espacial e bélico da era da Guerra Fria, onde a corrida espacial colocava em polos diametralmente opostos os dois blocos que dividiam o mundo no século XX: o mundo capitalista e socialista. Aqui Darks joga com interstícios meticulosamente selecionados dessas obras, destacando fragmentos de paisagens totalmente desprovidas de presença humana.
Não há trama, conflito ou resolução, a bolsa de imagens se desenvolve por meio de uma intrincada tapeçaria cinematográfica construída a partir do material bruto das sequências originais desses filmes, onde fragmentos de arquivo são reconfigurados, retorcidos e reinventados. "Uma Noite Perigosa na Ilha de Vulcano" urge como um gesto artístico radical que arrisaca rascunhar um novo universo (e aqui não me refiro à uma nova gênese), jogando com a ficção como essa espécie de recipiente onde um conjunto de imagens podem se amalgamar de forma não linear ou propositiva, além da montagem como gesto de rearticulação em processo contínuo e exercício de geração de sentido. Quando nega de forma tão frontal a estrutura narrativa dos filmes convencionais e desenha de forma tão artesanal o seu arsenal de referências, o filme, efetivamente, ganha vida, dando forma, cor, textura e cheiro a paisagens inexploradas e misteriosas. Esta metamorfose narrativa não apenas traz à luz fragmentos de um cinema de outro tempo, mas também os converte em algo completamente novo. A quebra de certos paradigmas revela um universo de possibilidades audiovisuais, onde a criatividade e a artesania de Darks convergem para criar cenários inventadas que mobilizam a imaginação do espectador.
A terra é um lugar. De forma alguma é o único lugar existente. Nem mesmo é um lugar típico. Nenhum planeta, estrela ou galáxia pode ser considerado um lugar típico, porque o cosmos é, na maior parte, vazio. O único lugar típico fica no vasto e frio vacuo do universo, a noite perpétuado espaço intergaláctico, um lugar tão estranho e desolado que, em comparação, os planetas, as estrelas e as galáxias parecem ser dolorosamente raros e aprazíveis. Se fôssemos parar num ponto aleatório do cosmos, a probabilidade de estarmos em ou perto de um planeta seria de menos de 1 bihlão de trilhões de trilhões. Na vida diária, tais possibilidades seriam consideradas nulas. Mundos são raridades preciosas.
(SAGAN, 2017. p. 31)
a figura da quimera seria mais adequada (2023)
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quimera
|é|
(qui·me·ra)
substantivo feminino
1. [Mitologia] Ser mitológico geralmente representado com um corpo híbrido entre leão, cabra e serpente ou dragão.
2. Coisa resultante da imaginação. = FABULAÇÃO, FANTASIA, ILUSÃO ≠ REALIDADE
3. Conjunto heterogêneo que resulta da combinação de elementos diferentes.
4. [Genética] Organismo em que há células com informação genética diferente, com origem em zigotos diferentes. (Confrontar: mosaico.)
5. Esperança irrealizável. = UTOPIA
6. [Ictiologia] Peixe condropterígio.
Origem etimológica:grego Khímaira, -as, Quimera, ser mitológico, de khímaira, -as, cabra jovem.
Uma postagem de blog sobre depressão e videogames oferece um exemplo esclarecedor. O autor descreve jogar videogames nos momentos de depressão, especialmente apreciando tarefas pequenas e repetitivas que levam a algum tipo de resultado construtivo — como plantar uma colheita, construir uma casa: O que torna o trabalho nos videogames tão empolgante é a chance de desfrutar plenamente de uma recompensa por seus esforços. Você recebe exatamente o que investe, de maneira muito direta. Os jogos mais satisfatórios são, na verdade, simulações fantasiosas de viver um valor básico marxista: o trabalho tem direito a tudo o que cria.
excerto de Mean Images
(STEYERL, 2023)
Muito do que foi dito sobre “Uma noite perigosa na ilha de Vulcano” pode ser reimaginado em “A Ilha”. A retorção do arquivo numa experiência que simula a lógica do video game e do desktop movie revela mais uma vez a predileção de Darks pela artesania ao intervir nas paisagens justapondo quadros, utilizando máscaras e sobreposições de forma reiterada; e explorando novamente a construção de um cenário cósmico que, dessa vez, não está enderaçado ao etéreo do vasto desconhecido, de um cosmos amplo e misterioso, mas ao gesto repetitivo do jogo. Tentativa e erro. A escolha de dois títulos típicos do gênero de sobrevivência diz muito sobre a batalha do homem contra o imperativo implacável do meio em uma nova era geológica. Death Stranding e The last of us surgem como pop-ups que enrijecem o arsenal de imagens que se justapõem no filme. O seu caráter processual, que revela detalhes como, por exemplo, um esboço de roteiro ou uma reunião de ideias para o filme ao passo que as imagens se alternam, no formato de uma caixa de texto, faz pensar no papel da palavra escrita não apenas como recurso discursivo, mas como objeto gráfico no trabalho de Darks. Há uma circularidade absolutamente orgânica que reúne a filmografia da artista em torno de avizinhamentos mais ou menos óbvios. Seria impossível deixar de notar que a própria personagem/alter-ego Darks Miranda emerge aqui com uma descrição minuciosa em narração da própria Luísa. “A Ilha” é mais uma das miscelânias e jogos de montagem da diretora, repleto de paisagens misteriosas, cenas de videogames, criaturas submarinas, geologias alienígenas e matéria cósmica.
A ideia de quimera evoca a alquimia e os experimentos de hibridização do DNA animal e/ou humano, frequentemente envolvendo ambos. Essa imagem pungente de criaturas míticas e exóticas cria uma aura de mistério e inovação, ligada à busca por novas formas de vida e às fronteiras éticas da ciência. A noção de quimera, portanto, suscita reflexões sobre os limites do conhecimento e os desafios morais que surgem quando a humanidade se aventura além do que é considerado natural. O que Darks Miranda e o artista multidisciplinar Juno B. (co-diretor) fazem em “A figura da quimera talvez seja mais adequada” não foge muito da abstração conceitual que mentalizo, ato contínuo, quando penso na palavra. Alguns aspectos chamam atenção aqui: a experimentação cromática, que faz com que a obra ganhe um ar imprevisivelmente polimorfo, que não se constrange ao ser essa espécie de shapeshifter. Explorando o fascínio do primeiro cinema e a obsessão pela mímese animal no final do século XIX e início do século XX, esse gesto performático inspirou artistas a incorporarem movimentos e essência animal em produções cinematográficas. Essa tendência fantasmagórica revela a tentativa de decifrar a interação humana-animal, capturando sua complexidade de forma até então inédita na imagem movimento. Levando em conta que a quimera pode ser qualquer coisa resultante da imaginação, fabulação e fantasia, seria possível descrever este trabalho como uma obra fantástica, repleta de morcegos e animais hematófagos; não a toa, espécies fartamente estudadas e experimentadas nas ciências biológicas. O nascimento de um ser híbrido mais-que-humano, não localizado pela ciência dura e cuja definição seria melhor explicada por um alquimista, ganha forma numa das sequências finais do filme, quando uma criatura misteriosa emerge de um invólucro gosmento e indistinto. A obsessão de Darks por vulcões em erupção, que aparecem em alguns outros filmes da diretora como "Zona Abissal”, me fez pensar no apagamento de vestígios materiais da história a partir de eventos catastróficos como em Pompéia. Mas assim como em Uma noite perigosa na ilha de vulcano (2022), aqui não há conflito. Não há apocalípse nem pós-apocalipse. Não há materialidade a ser apagada. Há fantasia e também a gestação de um conjunto de imagens híbridas, quiméricas, não classificáveis. Esse tipo de registro tende a sobreviver.