notas sobre o xv janela internacional de cinema do recife
Imaginar o inimaginável, representar o irrepresentável ¹
Um recorte específico de longas-metragens contemporâneos desta XV edição do Janela reacendeu uma questão antiga, considerada por muitos superada: como avaliar a eficácia de um filme ou desenvolver modelos pedagógicos que possam sensibilizar e engajar politicamente o espectador? É possível – ou mesmo desejável – adotar uma fórmula que pressupõe uma costura lógica entre a produção das imagens e dos gestos com o objetivo de antecipar certas reflexões e ações do público?
Rancière¹ oferece uma leitura da eficácia da arte que, ao ser instrumentalizada como ferramenta de consenso social, não apenas representa, mas também cria ficções e dissensos. Partir desse ponto de vista é particularmente relevante ao refletir sobre o espaço compartilhado de um festival de cinema, onde se encena a suspensão de qualquer relação impositiva entre a intenção artística, a forma sensível do filme e o conjunto de olhares do público em situação de comunidade.
Os filmes que me levaram a refletir sobre isso incluem A Fidai Film, East of Noon, Dahomey, Rising Up at Night, Grand Tour e No Other Land. É impossível conceber qualquer forma de exposição artística – especialmente em espaços comuns e com códigos de visibilidade tão específicos como a sala de cinema – sem considerar o genocídio e epistemicídio em curso, perpetrados pelo Estado de Israel na Palestina. O Janela nunca foi um festival restrito a temáticas ou conceitos curatoriais fixos, e não seria honesto apresentar a programação deste ano como uma resposta direta a essa questão política específica. No entanto, é igualmente impossível ignorar o impacto dessa realidade ao refletir sobre os filmes e as múltiplas formas de violência que eles articulam.
Para começar com um título importantíssimo e ainda inédito no Brasil, A Fidai Film chama a atenção pelo rigor formal e pela ética com que o realizador palestino Kamal Aljafari manipula os arquivos que compõem o filme. Do rastro escarlate que tinge rostos, corpos e diálogos entre israelenses e palestinos aos focos de incêndio que pontilham as janelas, o cineasta intervém diretamente nas imagens, evitando a armadilha da transparência, da legibilidade inequívoca ou da assimilação. No documentário, a operação em curso é profundamente devedora da manipulação das imagens. O autor, como montador, não nega a insuficiência do documento e do registro físico como testemunho fiel da história; pelo contrário, ele a reafirma, rasgando as camadas de leitura e sentido embutidas na experiência da imagem. O conhecimento dos meandros dessa história de violência não está contido em uma única imagem, assim como a imaginação não se limita a uma única representação.
Rancière² considera as imagens como partes de um dispositivo que contribuem para a construção e o apaziguamento do senso comum, entendido como um conjunto de dados sensíveis compartilhados. Esse conjunto abrange tanto os elementos visíveis quanto os modos de percepção e as significações a eles atribuídas. Em vez de prever a reação do público por meio de uma abordagem narrativa específica, o que está em jogo no filme – e, por extensão, em toda a programação de um festival como o Janela – é precisamente o modo e o dispositivo através dos quais ele será apresentado, para quais públicos, e quais tipos de engajamento se pode esperar.
Dois filmes como Grand Tour e East of Noon revelam muitas dessas questões por meio de seu gosto comum pela fábula e pela contação de história. De um lado, há o maneirismo e a estilização da imagem sob o ponto de vista fetichizado do colonizador, que mapeia o Oriente e a paisagem do Sul global; do outro, temos a fabulação e o artifício como expressões diretas do colonizado, que ficcionaliza a vida cotidiana como estratégia de apaziguar um regime de violências.
A crítica à espetacularização da violência e a ideia de que certos aspectos da realidade são irrepresentáveis provocam um distanciamento e uma desconfiança na capacidade das imagens e do cinema documental de exercerem verdadeira agência política. Em Dahomey e Rising Up at Night, filmes realizados por artistas africanos, vemos uma abordagem documental que retrata eventos específicos no Benin e na República Democrática do Congo, conectados de forma profunda à história de exploração colonial na África e às consequências da diáspora. Mati Diop e Nelson Makengo, cientes dos limites do registro documental, adotam estratégias de decupagem, montagem e edição que aproximam suas obras da ficção. No entanto, não se trata de uma ideia de ficção que fabricaria uma artificialidade em contraste com o real, mas sim de uma proposta que estabelece dissensos, tensionando e transformando a relação entre aparência e realidade.
No Other Land, trabalho de um coletivo de realizadores palestinos e israelenses, ressoa esses temas ao explorar o potencial político do arquivo digital como ferramenta de denúncia. No documentário, o uso de imagens de celular e recortes de redes sociais não apenas expõe, mas também constrói uma narrativa compartilhada que desafia os limites impostos pela espetacularização da violência. O arquivo digital nato, com sua imediaticidade, ubiquidade e alcance, transforma-se em um dispositivo poderoso, permitindo que fragmentos cotidianos capturados em momentos de extrema tensão e violência se tornem testemunhos visuais da realidade vivida. Assim, o filme acena para modos de representar o irrepresentável, criando um tecido visual e sonoro onde a memória coletiva desafia o controle narrativo sobre a experiência palestina sob a opressão israelense.
Na última edição da revista Afterall³, encontrei um panorama sobre o trabalho do artista multidisciplinar palestino Hazem Harb, cujo compromisso com o documento e o arquivo se manifesta em colagens, performances, desenhos e instalações. Sua produção contemporânea, profundamente envolvida com os eventos pós-7 de outubro, reaviva memórias coletivas que iluminam a vida cotidiana dos palestinos antes da Nakba, no final dos anos 1940. Um de seus projetos, intitulado Temporary Museum, explora o colecionismo, memorabilia e vestígios físicos do Estado palestino, remontando ao século XVIII, para questionar a lógica impositiva e ficcional que domina a narrativa sobre a Palestina desde o início do século XX. Mais do que tornar o imaginário real, o artista faz um esforço para insistir que a realidade palestina foi tornada imaginária, com o esquecimento de sua história na nova configuração geopolítica pós-Segunda Guerra Mundial.
Articular esses filmes em uma grade de programação exige cuidado ao redistribuir e endereçar a violência ao espectador. Embora o projeto Temporary Museum, de Hazem Harb, não faça parte da programação do Janela, ele é evocado aqui como uma referência que dialoga com o uso do arquivo e do documento em obras como A Fidai Film, No Other Land, Dahomey e Rising Up at Night. Esses trabalhos compartilham um compromisso com a preservação de memórias e a denúncia de apagamentos históricos. No contexto curatorial do XV Janela Internacional de Cinema do Recife, eles formam e informam uma ética das imagens no cinema que combate o esquecimento, reivindicando o direito de reimaginar o passado na transformação do presente.
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¹ Este texto utiliza fragmentos do ensaio “Montar um Filme Fidai”, publicado por Pedro Azevedo em colo.zone. Disponível em: https://www.colo.zone/notas/montar-um-filme-fidai. Acesso em: 29 out. 2024.
² RANCIÈRE, Jacques. A imagem intolerável. In: RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 83-104.
³ AFTERALL. Hazem Harb: My Heart is Still in Gaza. Disponível em: https://www.afterall.org/articles/hazem-harb-my-heart-is-still-in-gaza/. Acesso em: 29 out. 2024.
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Este texto foi publicado originalmente no catálogo do XV Janela Internacional de Cinema do Recife
O Janela de Cinema aconteceu em Recife de 01 a 08 de novembro de 2024, no Cinema São Luiz e no Cinema do Museu
mais informações sobre o festival: www.janeladecinema.com.br
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A specific selection of contemporary feature films from this XV edition of Janela has reignited an old question, considered by many to be settled: how can we evaluate the effectiveness of a film or develop pedagogical models capable of sensitizing and politically engaging the viewer? Is it possible—or even desirable—to adopt a formula that assumes a logical connection between the production of images and gestures, aiming to anticipate certain reflections and actions from the audience?
Rancière¹ offers a reading of the effectiveness of art which, when instrumentalized as a tool for social consensus, not only represents but also creates fictions and dissensus. This perspective is particularly relevant when reflecting on the shared space of a film festival, where the suspension of any imposing relationship between artistic intention, the sensory form of the film, and the collective gaze of the audience is enacted in a community setting.
The films that prompted me to reflect on this include A Fidai Film, East of Noon, Dahomey, Rising Up at Night, Grand Tour, and No Other Land. It is impossible to conceive any form of artistic exhibition—especially in common spaces with such specific visibility codes as the cinema—without considering the ongoing genocide and epistemicide perpetrated by the State of Israel in Palestine. Janela has never been a festival restricted to fixed themes or curatorial concepts, and it would not be honest to present this year’s program as a direct response to this specific political issue. However, it is equally impossible to ignore the impact of this reality when reflecting on the films and the multiple forms of violence they articulate.
To start with an essential and still-unreleased title in Brazil, A Fidai Film stands out for the formal rigor and ethics with which Palestinian filmmaker Kamal Aljafari manipulates the archival materials composing the film. From the scarlet trace staining faces, bodies, and dialogues between Israelis and Palestinians to the fires dotting windows, the filmmaker directly intervenes in the images, avoiding the trap of transparency, unambiguous legibility, or assimilation. In the documentary, the operation at work deeply owes itself to image manipulation. The author, as editor, does not deny the insufficiency of the document and physical record as faithful testimony to history; on the contrary, he reaffirms it, tearing through layers of meaning embedded in the experience of the image. Knowledge of the intricacies of this history of violence is not contained in a single image, just as imagination is not confined to a single representation.
Rancière² considers images as parts of a device contributing to the construction and pacification of common sense, understood as a set of shared sensory data. This set encompasses both visible elements and the modes of perception and significations attributed to them. Rather than anticipating audience reactions through a specific narrative approach, what is at stake in the film—and, by extension, in the entire program of a festival like Janela—is precisely the mode and device through which it will be presented, to which audiences, and what kinds of engagement can be expected.
Two films, Grand Tour and East of Noon, reveal many of these issues through their shared taste for fable and storytelling. On one side, there is the mannerism and stylization of the image from the fetishized perspective of the colonizer, mapping the Orient and the landscapes of the Global South; on the other, there is fabulation and artifice as direct expressions of the colonized, fictionalizing daily life as a strategy to pacify a regime of violence.
Criticism of the spectacularization of violence and the idea that certain aspects of reality are unrepresentable provoke a distancing and mistrust in the capacity of images and documentary cinema to exercise genuine political agency. In Dahomey and Rising Up at Night, films made by African artists, we see a documentary approach depicting specific events in Benin and the Democratic Republic of Congo, deeply connected to the history of colonial exploitation in Africa and the consequences of the diaspora. Mati Diop and Nelson Makengo, aware of the limits of documentary recording, adopt découpage, montage, and editing strategies that bring their works closer to fiction. However, this is not a notion of fiction that fabricates artificiality in contrast to the real but a proposal that establishes dissensus, tensioning and transforming the relationship between appearance and reality.
No Other Land, a work by a collective of Palestinian and Israeli filmmakers, resonates with these themes by exploring the political potential of the digital archive as a tool for denunciation. In the documentary, the use of cellphone footage and social media clips not only exposes but also constructs a shared narrative that challenges the limits imposed by the spectacularization of violence. The born-digital archive, with its immediacy, ubiquity, and reach, becomes a powerful device, allowing everyday fragments captured in moments of extreme tension and violence to become visual testimonies of lived reality. Thus, the film gestures toward ways of representing the unrepresentable, creating a visual and sonic fabric where collective memory defies narrative control over the Palestinian experience under Israeli oppression.
In the latest edition of Afterall³, I found an overview of the work of multidisciplinary Palestinian artist Hazem Harb, whose commitment to the document and archive manifests in collages, performances, drawings, and installations. His contemporary production, deeply engaged with events post-October 7, rekindles collective memories illuminating the daily lives of Palestinians before the Nakba in the late 1940s. One of his projects, titled Temporary Museum, explores collecting, memorabilia, and physical remnants of the Palestinian State, dating back to the 18th century, to question the imposing and fictional logic dominating the narrative about Palestine since the early 20th century. More than making the imaginary real, the artist insists that Palestinian reality has been rendered imaginary, with its history forgotten in the new geopolitical configuration post-World War II.
Curating these films in a programming grid requires care in redistributing and addressing violence to the viewer. While Hazem Harb’s Temporary Museum is not part of Janela’s program, it is invoked here as a reference that dialogues with the use of archives and documents in works like A Fidai Film, No Other Land, Dahomey, and Rising Up at Night. These works share a commitment to preserving memories and denouncing historical erasures. In the curatorial context of the XV Janela Internacional de Cinema do Recife, they shape and inform an ethics of images in cinema that fights forgetfulness, reclaiming the right to reimagine the past in transforming the present.
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¹ This text incorporates excerpts from the essay “Montar um Filme Fidai,” published by Pedro Azevedo on colo.zone. Available at: https://www.colo.zone/notas/montar-um-filme-fidai. Accessed: Oct. 29, 2024.
² RANCIÈRE, Jacques. The intolerable image. In: RANCIÈRE, Jacques. The Emancipated Spectator. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 83-104.
³ AFTERALL. Hazem Harb: My Heart is Still in Gaza. Available at: https://www.afterall.org/articles/hazem-harb-my-heart-is-still-in-gaza/. Accessed: Oct. 29, 2024.